terça-feira, 2 de julho de 2019

A INTERVENÇÃO DO TERAPEUTA DA FALA NA NEONATOLOGIA

Nas últimas décadas, ocorreram inúmeros avanços ao nível da medicina. Estes avanços proporcionaram a sobrevivência de recém-nascidos (RN) de 26 semanas de idade gestacional, RN de muito baixo peso, bem como RN com doenças embrionárias e genéticas, malformações e lesões encefálicas. O prognóstico de desenvolvimento dessas crianças, conforme demonstram diversos estudos, tem mostrado uma grande incidência de sequelas do desenvolvimento global na população de RN de pré termo e RN de risco. Os distúrbios são múltiplos e incluem desde dificuldades na função alimentar, bem como de aprendizagem e comportamentais a alterações neuromotoras. Dados que justificam a necessidade de uma equipe multidisciplinar intervindo precocemente nesta população no sentido de minimizar sequelas, proporcionando uma boa qualidade de vida a estes bebés. Cabe salientar ainda que estudos recentes mostram resultados relevantes e satisfatórios relacionados com o processo da estimulação precoce no sistema sensóriomotor oral, realçando que esta intervenção propicia a manutenção global do RN numa visão multidisciplinar. 

A intervenção do terapeuta da fala (TF) na neonatologia já é uma realidade em muitos serviços dos nossos hospitais, quer a nível do internamento quer ao nível de ambulatório. Esta intervenção visa aspetos relacionados com a alimentação, com a relação pais/bebé e com o desenvolvimento da comunicação/linguagem. A intervenção dá-se a um nível preventivo primário e secundário, pois envolve a orientação e o aconselhamento aos pais, como também a deteção e intervenção direta no RN. Esta intervenção é colocada em prática após a avaliação e elaboração de um programa de tratamento, tendo sempre em conta as necessidades específicas de cada bebé. As principais situações que requerem intervenção do terapeuta da fala são: alterações do padrão de sucção – deglutição – respiração; utilização de sonda; sucção débil; apneia durante a alimentação; recusa do alimento; perda de peso; reflexos orais ausentes ou exacerbados; alterações da sensibilidade oral e facial; preocupação com possível aspiração do alimento; letargia durante a alimentação; períodos longos de alimentação (acima dos 30 a 40 minutos); engasgos excessivos ou tosse recorrente durante a alimentação; refluxo nasal e gastroesofágico e dificuldades na amamentação (Costa, 1991,1994; Xavier,1995, 2002; Arvedson, 2002). 

A primeira abordagem do TF junto ao RN é feita em três momentos distintos, sendo eles: a observação do RN de risco em repouso e enquanto manipulado pela equipa de enfermagem, o segundo momento consiste na avaliação específica do TF, ou seja, a avaliação da motricidade orofacial (MOF) e da alimentação, de posturas e padrões de movimento, dos padrões respiratórios; dos estados de consciência; da prontidão para a alimentação e habilidade de atenção e da resposta à estimulação propriocetiva; da habilidade de regulação e da observação da interação pais – bebé; e o terceiro momento será após a alimentação. Tanto no primeiro como no terceiro momento os aspetos a serem observados/avaliados, são: a capacidade do RN em se autorregular, os seus estados de consciência, a resposta ao estimulo propriocetivo, tátil e vestibular bem como a sua resposta hemodinâmica à estimulação (frequência cardíaca, respiratória e saturação de oxigénio). Com esta informação, o TF poderá assim planear e gerir a forma como decorrerá a sua avaliação/intervenção, uma vez que esta tem sempre de ressalvar o bem-estar do RN. Apos a avaliação de todos estes fatores é elaborado um plano de intervenção tendo em conta o perfil do RN observado. 

A intervenção na neonatologia deve seguir uma metodologia no âmbito da teoria sinativa e do neurodesenvolvimento (Técnicas do Neurodesenvolvimento de Bobath) associadas à utilização de técnicas específicas do TF, tais como: a estimulação sensoriomotora oral, técnica da sucção não-nutritiva (SNN), o controlo oral e o handling, que irão auxiliar na maturação do sistema sensório motor oral do RN para a função alimentar (Calado, D. et al, 2012). Para além desta intervenção direta junto ao recém-nascido, cabe ao TF promover competências comunicativas e de vínculo afetivo entre o bebé e família; cooperar na otimização do ambiente da unidade de cuidados intensivos neonatais (UCIN) e trabalhar em intrínseca parceria com a restante equipa e família, promovendo o bem-estar do bebé e contribuindo assim para a sua alta hospitalar. 

Como já referido, estão comprovados os benefícios da intervenção do TF junto aos RN de risco para a função alimentar, referem-se como os principais: a adequação da MOF, a facilitação da associação da sucção com a saciação, o aumento da oxigenação durante e após a mamada, o aumento de peso com a mesma quantidade calórica, a passagem da alimentação por sonda para a alimentação via oral mais rápida e eficaz, a facilitação para o sucesso da amamentação e a alta hospitalar mais cedo, contribuindo assim para a prevenção da aspiração do alimento, do agravamento do quadro de disfagia, das dificuldades nas transições alimentares (diversificação alimentar), da sialorreia, das alterações do processamento sensorial (Disfunção da Integração Sensorial) e das dificuldades de motricidade oral que por sua vez também poderão influenciar a articulação dos sons da fala (Hernandez, 2001). 

Segundo a American Speech-language-Hearing Association (ASHA), o TF é o profissional adequado para atuar na unidade neonatal, pela sua competência em avaliar as funções alimentares, de interação pais-bebé e da capacidade de aquisição da linguagem recetiva e expressiva. No entanto, torna-se fundamental, que enquanto profissional integrante da equipa de neonatologia, este tenha conhecimentos sobre neurodesenvolvimento; sobre a especificidade da população – alvo; tenha facilidade em desenvolver relações interpessoais e trabalhar em parceria com os diferentes elementos da equipa; respeito pela dinâmica do serviço; disponibilidade temporal e emocional e capacidade de gestão, regulação e aceitação do insucesso, da deficiência e da morte como processos integrantes da vida. A formação diferenciada e específica em neonatalogia para terapeutas, motricidade orofacial, integração sensorial bem como em Técnicas do Neurodesenvolvimento de Bobath (TND – Bobath) tornam-se cruciais para a prática clinica deste profissional nesta área de intervenção. 

“ No dia 11 de Dezembro de 2006, o Martim nasceu, às 27 semanas, sem que ele ou nós estivéssemos preparados para receber um ser vivo com 963 gr, impreparado para um mundo repleto de obstáculos. Após várias batalhas pela vida, a alimentação assumiu-se como um desafio angustiante, muitas vezes frustrante… A intervenção pela terapeuta da fala constituiu não somente um meio facilitador para uma atividade que deveria ser básica pela sua essencialidade à vida, como um suporte emocional fundamental… A chegada da terapeuta à UCIN revestia-se de enorme espectativa, na medida em que era fundamental para a contenção de medos, inseguranças…representava a esperança de que o nosso bebé iria para casa, com a certeza de que o conseguiríamos alimentar… Sem a aprendizagem, carinhosamente, disponibilizada pela terapeuta não teria sido possível transformar momentos emocionalmente difíceis em memórias positivas para a vida… Alimentar um bebé é fundamentalmente um ato de amor… aprender a fazê-lo com ajuda especializada, neste caso pela terapia da fala, torna esse momento particularmente especial pois representa uma conquista de todos» (Iola e Justino, pais do Martim). 

São estes testemunhos, que para além de qualquer estudo científico estatisticamente significativo, sobre a nossa intervenção enquanto TF na neonatologia, que fazem-nos acreditar que fazemos a diferença na vida destes bebés! 



Bibliografia 

American Speech-Language-Hearing Association (ASHA)(2004a). Roles of speech-language pathologists in the neonatal intensive care unit: Position statement. Rockville, MD: Author. Arvedson (2006). Swallowing and feeding in infants and young children. GI Motility online (2006) doi:10.1038/gimo17.Published 16 May 2006 Calado, D. et al (2012). Intervenção fonoaudiologica em recem-nascido pré-termo: estimulação oromotora e sucção não-nutritiva. Rev. CEFAC. 2012 Jan-Fev; 14(1):176-181 Costa, S. P. (2009). Development of sucking patterns in preterm infants. Nederland: Nestlé Nutricion. Costa, S. P.(1994). Speech therapy for children`s nurses. Special issue of the journal for speech therapy curriculum development. Hernandez, A.M., Giordan, C. R., Shiguematsu, R. A. (2007). A intervenção fonoaudiológica em recém-nascidos de risco para distúrbios da deglutição e sua influência no aleitamento materno. Revista Brasileira Nutrição Clínica, 22 (1), 41-44. Xavier, C. (2002). Avaliação dos padrões de sucção em recém- nascidos prematuros visando a transição da alimentação de sonda gástrica para a via oral. Tese de doutoramento. Instituto de psicologia da universidade de São Paulo.